terça-feira, 19 de novembro de 2013

Mora Antes e Agora - O pinhal de Cabeção

O PINHAL DE CABEÇÃO – UMA MANCHA FLORESTAL MUITO LIGADA À SUA TERRA


 De entre as matas nacionais – e poderíamos referir os casos da Azambuja e Leiria, por exemplo – nenhuma certamente estabeleceu, ao longo da História, uma relação tão estreita com o povoado que lhe deu o nome como o pinhal de Cabeção. A História da vila, que foi concelho até 1836, está fortemente relacionada com a História do seu pinhal, que hoje ocupa uma área de 289.88 ha, e esse vínculo é perceptível não só em fontes documentais que devidamente o atestam, mas, inclusive, na tradição oral que ao longo dos tempos foi refletindo sobre as origens do pinhal e sobre as diferentes vertentes em que o mesmo foi sendo útil para a comunidade local.


A defesa dos direitos da população de Cabeção sobre o seu pinhal, devidamente documentada na tradição oral local, foi uma constante ao longo da História e reflete o carácter aguerrido dos cabeçanenses na defesa da sua comunidade face a interesses bem mais poderosos. Tendo em atenção o que se pode ler na página 10 do estudo publicado pelas edições Colibri em Lisboa, no ano de 2009, da autoria de Maria Ângela Beirante e Cândido Beirante« « de acordo com «uma tradição local, esta mata fora em tempos remotos propriedade dos habitantes da vila de Cabeção que a teriam doado à Coroa para livrarem os seus filhos de irem à guerra. Na realidade, tal tradição parece pouco consistente, pois só a vemos parcialmente registada num documento de 1831. Todos os demais são unânimes em afirmar que o Pinhal de Cabeção, tal como a própria vila, foi propriedade da Ordem de Avis.». Embora do ponto de vista dos factos históricos a tradição oral aqui mencionada não corresponda inteiramente à realidade, ela documenta, no entanto, a forte ligação das populações locais ao seu pinhal, que hoje tem o estatuto de mata nacional, constituindo uma mancha verde de importante valor ecológico, onde campeia o pinheiro manso, numa região em que a vegetação natural historicamente predominante é constituída por bosques de sobro e de azinho. Contudo, o pinhal de Cabeção, que provavelmente se terá constituído de forma espontânea, foi assumindo, ao longo dos séculos, uma importância estratégica significativa no contexto nacional. Foi justamente esta importância estratégica para a economia nacional que entrou por vezes em conflito com o aproveitamento que as populações locais iam fazendo da sua mata. Não nos podemos esquecer que a madeira, nomeadamente a madeira de pinho, pela facilidade em ser trabalhada, era um recurso muito importante em diversos domínios da vida quotidiana das populações de há alguns séculos atrás. Continuando a citar o estudo acima mencionado que serve de base à elaboração destas notas, «numa primeira fase, desde que D. Afonso II, em 1211, doou aos freires de Évora o lugar de Avis, para nele edificarem castelo e daí defenderem e povoarem toda a região circundante, o Pinhal de Cabeção pôde contribuir para a realização destes objectivos. Depois, quando a Coroa lançou ombros à empresa gigantesca dos Descobrimentos, esta Mata foi tida como uma reserva de matéria-prima ao serviço das armadas.


No período das guerras da Restauração e das do final do Antigo Regime, as madeiras do Pinhal foram canalizadas para a defesa militar das praças fronteiriças.» (p.11). Já no reinado de D. João I, a coroa determinava que mesmo nos terrenos incultos ou distribuídos em sesmarias os pinheiros que aí nascessem, mesmo longe do perímetro do pinhal, não poderiam ser arrancados pelos lavradores locais, pois pertenciam à Ordem. Como é fácil de perceber, tal medida prejudicava em muito os agricultores locais, certamente condicionados à prática de uma agricultura de subsistência, assente no cultivo do centeio e na criação de gado suíno. Os que desrespeitassem tais normas eram sujeitos ao pagamento de multas e mesmo à prisão. Lê-se, ainda, na página 18 do estudo acima citado: « «ninguém podia cortá-los (os pinheiros) «sem licença do mestre. Os moradores de Cabeção que precisassem de madeira para construir ou reedificar suas casas só o poderiam fazer com licença do almoxarife que lhes assinalaria o local onde deviam realizar o corte, estando-lhes vedado cortar pinheiros pelo pé». Já nos finais do século XVI (1574), sabe-se «que os moradores de Cabeção podiam aí colher pinhas, desde que o fizessem no tempo próprio, isto é, depois do dia de Santa Catarina (25 de Novembro).» (p.19). É durante todo este século que os pinheiros de Cabeção vão ser abundantemente utilizados na construção naval, já que «a madeira de pinheiro manso, por absorver pouca água e resistir ao ataque de vermes e fungos, era muito recomendada para a estrutura de obras vivas que ficavam abaixo da linha de água.» (p.21).


O fabrico do pez foi igualmente uma atividade muito importante desenvolvida no pinhal e que contribuiu nomeadamente para uma certa “renovação” da população local, dado que envolvia mão-de-obra especializada e sazonal que vinha de outros pontos do país. O pez era utilizado para calafetar navios, impermeabilizar mastros e cordame. Sobre este assunto, lê-se na página 17 da obra acima citada: «Temos provas abundantes de que a extracção do pez se realizou por muitos séculos no Pinhal de Cabeção. O documento mais antigo que conhecemos sobre esta actividade data de 1648 e regista o topónimo Hortas do Forno do Pez, topónimo que perdurou no tempo». Mas é já no século XIX que os conflitos se agudizam entre a câmara de Cabeção, defensora das reivindicações dos direitos tradicionais da população local sobre o seu pinhal e o estado que a pouco e pouco si ia modernizando e aplicando estratégias de desenvolvimento nacional. Não podemos esquecer que o século XIX é o século dos comboios e das estradas de MC Adam, infra-estruturas que necessitavam de muita madeira, nomeadamente para a construção das travessas para o caminho-de-ferro. Sabe-se que o fontismo utilizou muita madeira do pinhal nomeadamente na construção da ponte do Caia, integrada no eixo rodoviário que ligava a margem sul do Tejo à fronteira com a Espanha. A política liberal de nacionalização dos bens das ordens religiosas veio subtrair aos habitantes de Cabeção o direito que existia havia séculos de retirar madeira de pinheiro para a construção ou reparação das casas. Tentando impedir a tendência para a estatização do pinhal, «a 12 de Março de 1831, a Câmara enviava à Corte uma representação, suplicando ao rei D. Miguel autorização para fazer um corte anual de madeira no Pinhal da Real Mata, para que, com o produto da sua venda, pudesse pagar às amas dos treze expostos ou enjeitados que o concelho estava obrigado a sustentar.» (p.32). Tal reivindicação acabou por ser aceite, mas as décadas seguintes, coincidentes com o movimento da Maria da Fonte e outras perturbações sociais e políticas que levaram à extinção do concelho, assistiram à instauração de um clima de grande confusão no pinhal, com as autoridades responsáveis a queixarem-se que não tinham meios para fazer respeitar a lei e de evitar os cortes abusivos de madeira e outras transgressões. O clima de confronto foi tal que chegou a ser assassinado «barbaramente no Pinhal o Subdelegado do Procurador Régio do Julgado de Mora» (p.54).  Todavia, persistem, até meados do século passado, práticas que atestam a importância que o pinhal ainda então continuava a ter para os habitantes de Cabeção. Como exemplo, podemos citar a tradição local de ir à lenha às quintas-feiras, a recolha dos espargos e a venda ambulante de pinhões pelas ruas da vila.


Prof. Joaquim Lagartixa
Fotografias Prof. Manuel Pinto