De entre as matas nacionais – e poderíamos referir os casos da
Azambuja e Leiria, por exemplo – nenhuma certamente estabeleceu, ao longo da
História, uma relação tão estreita com o povoado que lhe deu o nome como o
pinhal de Cabeção. A História da vila, que foi concelho até 1836, está
fortemente relacionada com a História do seu pinhal, que hoje ocupa uma área de
289.88 ha, e esse vínculo é perceptível não só em fontes documentais que
devidamente o atestam, mas, inclusive, na tradição oral que ao longo dos tempos
foi refletindo sobre as origens do pinhal e sobre as diferentes vertentes em
que o mesmo foi sendo útil para a comunidade local.
A defesa dos direitos da
população de Cabeção sobre o seu pinhal, devidamente documentada na tradição
oral local, foi uma constante ao longo da História e reflete o carácter
aguerrido dos cabeçanenses na defesa da sua comunidade face a interesses bem
mais poderosos. Tendo em atenção o que se pode ler na página 10 do estudo
publicado pelas edições Colibri em Lisboa, no ano de 2009, da autoria de Maria
Ângela Beirante e Cândido Beirante« « de acordo com «uma tradição local, esta
mata fora em tempos remotos propriedade dos habitantes da vila de Cabeção que a
teriam doado à Coroa para livrarem os seus filhos de irem à guerra. Na
realidade, tal tradição parece pouco consistente, pois só a vemos parcialmente
registada num documento de 1831. Todos os demais são unânimes em afirmar que o
Pinhal de Cabeção, tal como a própria vila, foi propriedade da Ordem de Avis.».
Embora do ponto de vista dos factos históricos a tradição oral aqui mencionada
não corresponda inteiramente à realidade, ela documenta, no entanto, a forte
ligação das populações locais ao seu pinhal, que hoje tem o estatuto de mata
nacional, constituindo uma mancha verde de importante valor ecológico, onde
campeia o pinheiro manso, numa região em que a vegetação natural historicamente
predominante é constituída por bosques de sobro e de azinho. Contudo, o pinhal
de Cabeção, que provavelmente se terá constituído de forma espontânea, foi
assumindo, ao longo dos séculos, uma importância estratégica significativa no
contexto nacional. Foi justamente esta importância estratégica para a economia
nacional que entrou por vezes em conflito com o aproveitamento que as
populações locais iam fazendo da sua mata. Não nos podemos esquecer que a
madeira, nomeadamente a madeira de pinho, pela facilidade em ser trabalhada,
era um recurso muito importante em diversos domínios da vida quotidiana das
populações de há alguns séculos atrás. Continuando a citar o estudo acima
mencionado que serve de base à elaboração destas notas, «numa primeira fase,
desde que D. Afonso II, em 1211, doou aos freires de Évora o lugar de Avis,
para nele edificarem castelo e daí defenderem e povoarem toda a região circundante,
o Pinhal de Cabeção pôde contribuir para a realização destes objectivos.
Depois, quando a Coroa lançou ombros à empresa gigantesca dos Descobrimentos,
esta Mata foi tida como uma reserva de matéria-prima ao serviço das armadas.
O fabrico do pez foi igualmente uma atividade muito importante desenvolvida no pinhal e que contribuiu nomeadamente para uma certa “renovação” da população local, dado que envolvia mão-de-obra especializada e sazonal que vinha de outros pontos do país. O pez era utilizado para calafetar navios, impermeabilizar mastros e cordame. Sobre este assunto, lê-se na página 17 da obra acima citada: «Temos provas abundantes de que a extracção do pez se realizou por muitos séculos no Pinhal de Cabeção. O documento mais antigo que conhecemos sobre esta actividade data de 1648 e regista o topónimo Hortas do Forno do Pez, topónimo que perdurou no tempo». Mas é já no século XIX que os conflitos se agudizam entre a câmara de Cabeção, defensora das reivindicações dos direitos tradicionais da população local sobre o seu pinhal e o estado que a pouco e pouco si ia modernizando e aplicando estratégias de desenvolvimento nacional. Não podemos esquecer que o século XIX é o século dos comboios e das estradas de MC Adam, infra-estruturas que necessitavam de muita madeira, nomeadamente para a construção das travessas para o caminho-de-ferro. Sabe-se que o fontismo utilizou muita madeira do pinhal nomeadamente na construção da ponte do Caia, integrada no eixo rodoviário que ligava a margem sul do Tejo à fronteira com a Espanha. A política liberal de nacionalização dos bens das ordens religiosas veio subtrair aos habitantes de Cabeção o direito que existia havia séculos de retirar madeira de pinheiro para a construção ou reparação das casas. Tentando impedir a tendência para a estatização do pinhal, «a 12 de Março de 1831, a Câmara enviava à Corte uma representação, suplicando ao rei D. Miguel autorização para fazer um corte anual de madeira no Pinhal da Real Mata, para que, com o produto da sua venda, pudesse pagar às amas dos treze expostos ou enjeitados que o concelho estava obrigado a sustentar.» (p.32). Tal reivindicação acabou por ser aceite, mas as décadas seguintes, coincidentes com o movimento da Maria da Fonte e outras perturbações sociais e políticas que levaram à extinção do concelho, assistiram à instauração de um clima de grande confusão no pinhal, com as autoridades responsáveis a queixarem-se que não tinham meios para fazer respeitar a lei e de evitar os cortes abusivos de madeira e outras transgressões. O clima de confronto foi tal que chegou a ser assassinado «barbaramente no Pinhal o Subdelegado do Procurador Régio do Julgado de Mora» (p.54). Todavia, persistem, até meados do século passado, práticas que atestam a importância que o pinhal ainda então continuava a ter para os habitantes de Cabeção. Como exemplo, podemos citar a tradição local de ir à lenha às quintas-feiras, a recolha dos espargos e a venda ambulante de pinhões pelas ruas da vila.
Prof. Joaquim Lagartixa
Fotografias Prof. Manuel Pinto
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