Anta da Ordem, Cabeção
Dando continuidade ao trabalho que tem vindo a concretizar-se neste espaço – e cujo objetivo é muito simplesmente o de divulgar autores e trabalhos relacionados com a História e a realidade atual da comunidade em que nos inserimos – cabe agora coligir algumas notas sobre um fenómeno significativo da pré-História portuguesa e mesmo europeia, conhecido pela designação de “megalitismo de Pavia”, que tem merecido a atenção de especialistas da arqueologia desde os finais do século XIX até aos nossos dias. Com efeito, investigadores como Leite de Vasconcelos, Matos Silva, Pereira da Costa, Emile Cartailhac, Nery Delgado, Carlos Ribeiro, entre outros, realizaram trabalhos arqueológicos na área de Pavia, de forma mais ou menos sistematizada, muitos dos quais nem chegaram a ser publicados. É, no entanto, na segunda década do século XX que o megalitismo de Pavia merece a atenção de um investigador, Vergílio Correia, que efetuou na região, entre 1914 e 1918, um trabalho de campo pioneiro e assinalável, cientificamente criterioso, tendo escavado, classificado e registado diversos monumentos megalíticos, povoados e santuários, publicando os resultados do seu trabalho em Espanhol, o que deu ao megalitismo de Pavia uma projeção internacional de que ainda hoje goza nos meios académicos. Nas décadas subsequentes, os trabalhos de Vergílio Correia foram retomados e aprofundados por Manuel Heleno, pelo casal alemão Georg e Vera Leisner (1956/1959), e por Irisalva Moita (1956) 1*. Mas é nos últimos vinte anos que, graças aos trabalhos de investigadores como Manuel Calado, Leonor Rocha, Pedro Alvim, Emmanuel Mens e Rui Mataloto, que os estudos arqueológicos sobre o megalitismo de Pavia têm progredido de forma sistemática, técnica e científica, numa perspetiva de integração do fenómeno a nível regional e trazendo a lume hipóteses interpretativas de grande interesse científico.
A primeira referência ao fenómeno que nos ocupa data já do século XVII
(1625) e consta de um texto de Severim de Faria, recolhido por Leite de
Vasconcelos e citado por Leonor Rocha 2*, no qual se fala da anta de S. Dinis
(ou S. Dionísio) nos seguintes termos: « (...) se vê hoje huã lapa feita por
natureza, e aperfeiçoada por arte, que he ermida de Sam Denis, santo que uenera
muito aquelle povo pellas grandes m(ercê)s que delle alcansa principalmente nos
enfermos de maleitas: ha tradição entre os naturaes que naquella coua aparecera
huã imagem do santo (...) ». Trata-se, portanto, de uma espécie de
“reorientação do sagrado” ou seja, uma “cristianização” daquele espaço, cuja
sacralização remonta ao neolítico.
Vergílio Correia divide o fenómeno megalítico paviense em três categorias:
“lugares de habitação”, “lugares de sepultura” e “lugares de religião”. «Aos
locais ”de culto” correspondem, nesta perspetiva, os recintos formados por
blocos graníticos e os abrigos naturais ou ainda rochas cuja erosão provocou
formas mais ou menos sugestivas. Completamente ignorados por ele ficaram os
menires e ”cromeleques”, relativamente bem representados nesta área e que só
muito mais tarde viriam a ser identificados» 3*. Embora, numa perspetiva atual,
os solos da região não possuam um elevado nível de aptidão para a agricultura,
característica determinante na fixação de sociedades agrárias como as do
neolítico, face à abundância de vestígios encontrados, nomeadamente “mós”,
“percutores”, “machados” e “enxós”, «pode-se supor que, na pré-história, em
função das tecnologias disponíveis e dos modos de utilização do solo, existiu
uma atividade agrícola relativamente intensa. Por outro lado, as manchas de
matagais em áreas mais declivosas, junto às ribeiras, favorecem as práticas da
pastorícia e da caça» 4*. Assinala-se, pois, um conjunto de características
naturais suscetíveis de favorecerem a fixação de populações pré-históricas, em
estreita relação com os cursos de água e respetivos vales. Com efeito, «As
antas e sepulturas megalíticas distribuem-se ao longo das duas margens das
principais ribeiras da área, verificando-se as maiores concentrações nas
ribeiras do Almadafe, da Tera e do Divor» 5*. Embora os vestígios encontrados
na área de Pavia correspondam de uma forma marcante aos períodos do neolítico
médio e final, para os quais, dada a quantidade de instrumentos de pedra polida
e mesmo de cerâmica encontrados nas escavações até agora realizadas, é possível
supor um nível bastante elevado de ocupação humana, há igualmente registos da
presença humana em idades subsequentes como sejam o calcolítico e a idade do
ferro. No que diz respeito à idade do cobre (calcolítico), já escavado por
Vergílio Correia, encontra-se a 1.200
m. a norte de Pavia «o único povoado fortificado
(Castelo de Pavia,» 6* que se encontra «num esporão sobre a ribeira de Tera,
num ponto que não é topograficamente dominante, muito embora a defensabilidade
natural seja elevada» 7*. A descoberta no local de «centenas de pesos de tear
«indicia, para este local, a existência de uma intensa atividade de produção de
tecidos, para consumo local ou mesmo, eventualmente, tendo em vista a sua
”exportação” para outras áreas» 8*. No entanto, a dinâmica aqui verificada não
tem prolongamento nas idades subsequentes correspondentes aos períodos do
bronze e do ferro, em relação aos quais se regista uma surpreendente
quebra nos testemunhos respeitantes à atividade humana. São muito raros ou mesmo
inexistentes os vestígios encontrados respeitantes a estes períodos, o que leva
Leonor Rocha a formular, como hipóteses interpretativas para tal fenómeno, a
existência de um «declínio populacional à escala regional» 9*, o registo de um
«esgotamento da produtividade dos solos, ou, ainda, «o facto de Pavia se situar
num território periférico em relação a alguns dos principais eixos
civilizacionais do interior» 10*
1 Vd. Manuel Calado, Leonor Rocha E Pedro Alvim (coord.s), “O Tempo das Pedras”, ed. Da Câmara Municipal de Mora, Mora, 2012, pp.12-13. Sobre os trabalhos de Vergílio Correia vd. Vergílio Correia, “El Neolítico de Pavia”, fac-simile da edição de 1921, ed.s Colibri, Lisboa, 1999.2 Leonor Maria Pereira Rocha, “Povoamento Megalítico de Pavia”, ed. Da Câmara Municipal de Mora, Mora, 1998, p.25.
3 Idem, p.28; 4 Ibidem, p.35;
5 Ibidem, p.65.
6 Ibidem, p22.
7 Ibidem, p. 89.
8 Ibidem, p. 83.
9 Ibidem, p. 92.
10 Ibidem, p. 108.
Prof. Joaquim Lagartixa
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